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domingo, 22 de março de 2015

Corsários holandeses atacam Santos e São Vicente no século XVII.


(Le portrait de Capo de St. Vincent en Brésil- estampa de Miroie Oest et West Indical, publicada em 1621 por Jan Janez, editor de Amsterdam)

 
Neste desenho do século XVII se resumem com escassa precisão e diversos erros palpáveis o cenário das ações desenvolvidas por corsários holandeses contra as vilas de São Vicente e Santos, sitas na Ilha de São Vicente, em 1615, e a reação a eles opostas por seus habitantes.

Mas, é bom antes de tudo se começar rememorando o passado distante, lembrando-se que os holandeses participaram do empreendimento açucareiro no Brasil, oriundo do reino de Portugal, desde os seus primórdios. Mas, em 1580, Felipe II, rei da Espanha, ascendeu ao trono português, sendo por sua morte sucedido no trono luso por mais dois reis hispânicos. Foi a chamada União Ibérica, que perdurou até 1640. Totalmente impedidos durante ela de continuar a participar dos lucros da indústria açucareira brasileira, por serem ferrenhos inimigos dos espanhóis, os batavos partiram para o uso da força, o que explica este feroz episódio, que tanto traumatizou aos colonizadores da Ilha de São Vicente.

Voltando agora aos fatos objetos desta devo destacar a origem da frota atacante, que navegava sob a bandeira da “Vereinigda Oostindische Compagnie” (VOC), uma entidade tão importante, que merece algumas explicações sobre ela..

A VOC (Vereinigda Oostindische Compagnie), ou Companhia das Índias Orientais,  surgiu em 1602 pela fusão de várias firmas de navegação holandesas, formando a primeira empresa multinacional, de responsabilidade limitada e de capital aberto que se teve notícias.

 
 
(bandeira da Companhia Neerlandesa das Índias Orientais)


Receberam do estado holandes a liberdade de contratar soldados, construir embarcações de guerra e emitir moeda, tudo em nome dos Estados Gerais. Ao contrário de sua irmã, a GWC (Companhia das Índias Ocidentais), que encontrou a falência nas lutas dentro do Brasil, a VOC prosperou nas terras do Oriente, e lançou as bases do colonialismo holandês naquela parte do globo. A forma capitalista da empresa lhe deu um grande impulso, e os lucros obtidos compensavam as guerras com portugueses, ingleses e espanhóis no Oriente, de forma que a Companhia remeteu a Holanda grandes somas nas décadas que se seguiram à sua criação, e também expandiu o mundo colonial holandês de forma muito significativa na conquista territorial.
 
 
E quem era o comandante corsário desta importante flotilha de guerra? Foi Joris Van Spilbergen, um duro combatente naval, que alugando seus préstimos navegou em muitas águas a partir de 1596, tendo estado presente em expedições armadas na África, na Ásia, na Espanha (em Gibraltar então espanhola), na América espanhola e portuguesa (México, Chile, Brasil) e até nas Filipinas.
 

Em agosto de 1614, Van Spilbergen foi enviado pela Companhia das Índias Orientais (VOC)  com o propósito de procurar um caminho mais curto para as Molucas, pelo estreito de Magalhães, e teve sob suas ordens seis navios: — o Groote Zon, o Groote Maan, o Jager e o Meeuw, da Câmara de Amsterdã; o Eolus, da  Zelândia e o Morgenster, de Roterdã. Como já disse a VOC era privada, mas tinha atuação internacional, e gozava de prerrogativas excepcionais concedidas pelo governo holandês já antes explicadas.
 
(embarcação holandesa da VOC)


Van Spilbergen durante este cruzeiro em suas fainas marítimas acabou incursionando por águas brasileiras e nelas apresou uma caravela portuguesa com boa carga (provavelmente esta era a sétima embarcação que aparece no desenho), dirigindo-se então a ilha de São Vicente. Naquela época, Portugal, do qual dependia o Brasil, ainda era governado pelo rei espanhol, Filipe III, persistindo ainda conflitos armados entre Espanha e Holanda, razão do ataque não provocada às pequenas vilas luso-brasileiras.

(Filipe III, rei da Espanha e de Portugal em óleo de Pedro Antonio Vidal)

Sobre sua incursão existe uma versão holandesa, totalmente facciosa, pela qual os navegantes batavos tinham vindo em paz e “foram recebidos pelos portugueses de forma hostil, e (com eles) falharam todas as tentativas para estabelecer relações comerciais, razão porque os holandeses abriram de novo suas velas deixando aquelas regiões inospitaleiras”. A verdade, porém, é que a sua inusitada visita e estadia ai foram marcadas pelo derramamento de sangue, destruições e saques.

De qualquer forma, como sobre tudo aquilo só exista aquele impreciso desenho, eu o reproduzo novamente em outra imagem, desta vez colorida, para assim melhor fazer diversos comentários.


(a mesma gravura colorida digitalmente por Victor Hugo Mori, IPHAN, SP)


Neste já se veem sete embarcações holandesas, sendo cinco agrupadas e duas deslocadas, fora um navio português incendiado. Uma delas, a esquerda e acima (Meeuw ou Gaivota) vigia o porto de São Vicente, enquanto a direita e abaixo no canal está outra (Jager ou Caçador) a certa distância de uma fortaleza, cujo fogo os seus escaleres de reconhecimento não ousaram enfrentar. Logicamente, esta é a fortaleza da Barra Grande, sobre a qual depois irei discorrer. Havendo ainda uma incursão em outros escaleres inimigos em demanda a vila de Santos.

As duas vilas de Sanctus e St. Vincent têm portas, estacada, igrejas, edifícios altos, sendo a segunda maior do que a primeira. Notam-se em diferentes pontos do litoral numerosas tropas de índios e brancos armados, à espera do desembarque dos batavos.

A ilha de Santo Amaro não chega a encobrir a entrada da baía e não apresenta uma larga costa oceânica, como de fato acontece. Consequentemente, o canal da Bertioga sai dentro da baía, e leva o autor do desenho a alguns enganos. O principal deles é localizar a vila de Santos na ilha de Santo Amaro, quando na realidade ela está sobre a margem direita, na ilha de São Vicente, bem em frente ao estuário existente entre esta e a ilha de Santo Amaro.

Para melhor entender a realidade é bom se examinar o mapa abaixo, que é atual, mas mostra as duas ilhas e o continente, sem esquecer Santos, São Vicente e Bertioga, como realmente eram e são até hoje.


(parte do litoral paulista em desenho atual)


Veem-se ainda outras cenas importantes, a saber: o incêndio de um engenho (de Jerônimo Leitão), de uma igreja ("Santa Maria das Naus" ou "Nossa Senhora das Naus") e de um depósito de açúcar (trapiche do Engenho de Jerônimo Leitão). Fora outras também importantes, como a cena de um desembarque batavo e uma outra de uma marcha deles em formatura. Fora outras de pouca importância: um índio balançando-se numa rede, e mais dois índios nus, logicamente algo que atraiu a curiosidade do desenhista. Sobre aquele engenho, seu trapiche e a igreja então destruídos, destaco que o primeiro chamava-se Engenho Nossa Senhora das Naus, realmente era de Jerônimo Leitão e fora construído junto ao Mar Pequeno, aonde hoje se situam as ruínas do chamado Porto das Naus, tudo isto em São Vicente. Tão isolados foram fácil presa dos irascíveis holandeses.
Diante deste quadro percebe-se que as coisas foram bem duras na Ilha de São Vicente. Mas, seus habitantes não se acovardaram e reagiram o melhor que puderam aos invasores. Era então Capitão-mor da Capitania, Paulo da Rocha Siqueira, residente em Santos, e foi ele com os principais homens da terra, quem iniciaram a resistência. Amador Bueno da Ribeira, aquele que bem depois não quis ser rei paulistano, sabendo do que ocorria na baixada desceu de São Paulo, aonde vivia, com um corpo de paulistas e de índios, armados à sua custa, e que fora engrossado por outros paulistas eminentes e seus colaboradores, em socorro das vilas ilhoas. Todos eles unidos corajosamente salvaram as duas povoações, após rudes combates na faixa praiana, com o apoio dos canhões da Fortaleza da Barra Grande e de algumas peças de artilharia postadas na praia do Embaré. Diante da forte reação os invasores desistiram de seus maus intentos, retiraram-se para seus navios e neles partiram, para nunca mais retornar. Graças a Deus!

Durante os fatos teve importante papel defensivo a Fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande, cujos fogos causaram mortes e danos aos invasores, auxiliando muito aos demais combatentes luso-brasileiros.

 



(Fortaleza da Barra Grande – desenho de Lauro Ribeiro da Sila – RIBS)


Esta, fora erguida em 1584, por ordem do rei Felipe II, na embocadura do estuário de Santos, conforme projeto do arquiteto militar, Giovanni Battista Antonelli. Ela foi então assentada sobre um esporão rochoso, coberto pela Mata Atlântica, que se projetava sobre o canal de acesso ao Porto de Santos. E foi levantada quando esta  necessidade se tornou patente após a ação militar vitoriosa de Andrés Higino, da esquadra de Valdez, contra os navios ingleses de Edward Fenton, em 1583, algo de que já tratei anteriormente neste blog.

Como agradecimento pelo seu papel nas pugnas então ocorridas, Amador Bueno da Ribeira tornou-se logo depois Capitão-mor de São Vicente, uma grande honra, que ele aceitou, mas sem aceitar receber por isto qualquer remuneração, algo que ele próprio impôs espontaneamente.

Não custa se dizer, que Santos e São Vicente, dependiam especialmente naquela época da exploração do açúcar, que era cultivado em Cubatão e no sitio São Jorge (neste surgiu muito depois um dos bairros santistas, a Vila São Jorge), aonde havia um dos diversos engenhos, chamado dos Erasmos, fora diversos outros em toda a área, sendo depois o açúcar neles produzido exportado através do pequeno porto santista. Criava-se também gado, curtindo-se seus couros, com isto garantindo-se alimentação e rendas. Os indígenas assimilados também trabalhavam e recebiam em pagamento quinquilharias havendo então pequeno número de escravos negros. As duas vilas eram fortificadas para preserva-las dos índios selvagens e dos corsários, contando até com pequena artilharia para tal. Isto foi muito bom, pois senão elas teriam sido arrasadas pelo feroz Spielbergen. Daquela época distante só restaram vestígios de parte do Engenho dos Erasmos, hoje tombado e preservado, conforme imagem a seguir.



(Engenho dos Erasmos – tela de Carlos Fabra)
 
Depois de batido na Ilha de São Vicente Van Spilbergen prosseguiu sua derrota e pelo Estreito de Magalhães foi até o Oceano Pacífico no atual Chile e dentre outras ações acabou invadindo a ilha de Santa Maria, e a cidadezinha de Auroca, por duas vezes. Nesta expulsou a guarnição espanhola e ainda mandou incendiar todas as casas. Só por isto se vê qual era o real ânimo do chefe holandês. Na sequência, o mesmo fundeou em Valparaíso, onde segundo a história holandesa encontrou já todas as habitações incendiadas pelos espanhóis.  Foi ali, que 200 marinheiros e soldados batavos obtiveram grande vitória contra as tropas espanholas, fazendo nestas prisioneiros.

Em continuidade já em 17 de julho de 1615 Spielbergen entrou em combate com uma frota espanhola composta de oito galeões tripulados por 1.600 marujos e soldados, sob o comando do almirante espanhol Rodriguez de Mendoza, que ele derrotou, embora estivesse em inferioridade de embarcações. Este foi ainda o primeiro embate naval em que os holandeses tiveram uma vitória completa contra os espanhóis nessa parte do mundo. Essa derrota também custou à Espanha quatro grandes galeões e, entre os mortos, que se elevaram a cerca de mil, contavam-se os próprios almirante e vice-almirante hispânicos. Ai Spielbergen mostrou que era mesmo um valoroso lobo do mar.



(navio de guerra holandês disparando seus canhões – tela a óleo de Willem van de Velde II)
 
Comparando estas vitórias com os magros resultados obtidos na Ilha de São Vicente, de onde ele se retirou derrotado, percebe-se o valor daquela gente luso-brasileira, que incluía indígenas, todos eles pessoas simples e corajosas, que ali viviam enfrentando grandes dificuldades, e que esforçando-se ao máximo bateram a valorosa e bem treinada e armada tropa naval e terrestre dos holandeses.

 
Como se percebeu neste relato Joris Van Spilbergen era um hábil e corajoso comandante naval. Também ele mostrou em suas viagens a sua classe social e sua boa educação, pois gostava de viver bem a bordo, mantendo o seu navio bem provido de virtualhas e de bebidas, além de exigir que seus tripulantes fossem bem uniformizados. Mas, estranhamente morreu pobre na Holanda em 1620.



(Joris van Spilbergen, 1568 - 1620)

E a Vereinigda Oostindische Compagnie” (VOC), o que houve no curso do tempo com ela? Na verdade, seus ataques e pilhagens renderam-lhe grandes lucros durante bastante tempo. Em 1669, a VOC era a mais rica companhia privada do mundo, com mais de 150 navios mercantes, 40 navios de guerra, 50 000 funcionários, um exército privado de 10 000 soldados e uma distribuição de dividendos de 40%. Mas, as guerras encetadas contra os ingleses a enfraqueceram comercialmente, sendo que em 1796 ela foi estatizada e em 1803 acabou sendo fechada, já falida e com muitas dívidas.
 

Observando as suas atividades ao longo de tanto tempo notei que esta empresa, aproveitando-se da longa guerra hispano-holandesa, buscava ganhar bastante dinheiro, mediante ações bélicas em terra e no mar. Atacava e ocupava terras, guerreando seus anteriores ocupantes, batia-se contra naves de guerra e apresava ambarcações mercantes inimigas. Transformou uma guerra bilateral em fonte de ganhos próprios, recolhendo impostos ao estado batavo. Quanto a Joris Van Spilbergen o mesmo não era pirata, mas um mercenário naval, que colocando-se sobre as ordens daquela grande firma, exercia em especial a guerra de corso.


De tudo aquilo de então nesta cidade de Santos só restou passados tantos séculos fora as ruinas do velho engenho só mesmo a velha fortaleza aqui referida (situada no município de Guarujá), que continua preservada e cuja imagem atual  reproduzo a seguir:

 


(ao fundo o velho forte e navegando no estuário uma nave de guerra brasileira)




Fontes:

 
NETSCHER, P.M. OS HOLANDESES NO BRASIL. Tradução de Mário Sette. São Paulo: Companhia Editora Nacional. Edição 1942.

 


 

Coleção - Imagens Período Colonial - São Paulo. <http://www.sudoestesp.com.br/file/colecao-imagens-periodo-colonial-sao-paulo/667/> Acesso em: 04/02/2015.

 

Fórum de Numismática. http://www.forum-numismatica.com/viewtopic.php?f=63&t=85630 Acesso em: 16/02/2015.

 

Wikipédia, a enciclopédia livre. http://pt.wikipedia.org/wiki/Filipe_III_de_Espanha Acesso em: 03/03/2015.

 

Wikipédia, a enciclopédia livre. http://pt.wikipedia.org/wiki/Companhia_Holandesa_das_%C3%8Dndias_Orientais Acesso em: 10/03/2015.

 

Novo Milênio. Spielbergen atacou Santos em 1615. http://www.novomilenio.inf.br/santos/h0049a1.htm A matéria virtual contem trechos da obra História de Santos, de autoria de Francisco Martins dos Santos 2.ª edição, Santos-SP, 1986. Acesso em: 21/03/2015.

 

Um comentário:

PROFESSOR DRAGÃO DO MAR disse...

Caríssimo Dr. João Lima desejo parabenizá-lo pelo blog de tenaz valor intelectual.

Interesso-me por história militar, em especial a naval brasileira e, assim há tempos estava em busca de informações a respeito de ocorrências de cunho militar no litoral santista.

Atenciosamente.
Prof. Venâncio